Rogério Ceni na comemoração do bicampeonato do Flamengo — Foto: Marcos Ribolli

São Paulo

Tivesse Edenilson aguardado um segundo a mais para projetar seu corpo à frente, hoje discutiria-se o rebatismo do Beira-Rio, a nova Arena Abel Braga. Rogério Ceni seria um fracassado, fadado a treinar times menos pesados, e o elenco do Flamengo exibiria sinais de desgaste, a necessidade da famosa e quase sempre tola “reciclagem”.

A fantasia de que o futebol é praticado por personagens que se situam no heroísmo ou na vilania acarreta na criação de um abismo mentiroso entre quem vence e quem perde. São jogadores, treinadores, seres humanos separados muitas vezes, como no caso da decisão do Brasileirão-2020, por um segundo. Por centímetros.

Numa temporada ainda mais aleatória do que costumam ser as nacionais, o campeonato consagrou outro vencedor que ainda não pode se definir como projeto bem acabado: o Flamengo de Rogério Ceni, tal qual o Palmeiras de Abel Ferreira, na Libertadores, não tem nem quatro meses de existência. É o resultado de uma série de soluções emergenciais criadas para vencer daqui a três dias. Soluções que funcionaram, assim como as de Abel Braga no Internacional, daí o mérito dos treinadores.

Depois dos títulos de 2019, temperados com profundo encantamento, criou-se no universo rubro-negro a equivocada impressão de que o máximo a ser feito por outro comandante que não fosse Jorge Jesus seria não atrapalhar. Qualquer elemento alheio àquele momento único era intruso, como se fosse possível parar no tempo e ignorar as óbvias dificuldades que até o próprio Jesus encontraria para sustentar o altíssimo nível num campeonato historicamente marcado pelo equilíbrio.

Rogério Ceni e Abel Braga são, nesta sexta-feira, essencialmente as mesmíssimas pessoas e profissionais que eram no dia em que foram anunciados pelos atuais clubes. E seriam a mesmíssima coisa se Edenilson estivesse centímetros mais para trás e o tabu colorado, enfim, se encerrado. Não significa que não tenham evoluído, aprendido, tanto o jovem como o veterano treinador.

Ao longo dos quase três anos de Fortaleza, Ceni escolheu ser ofensivo na Série B e nos torneios estaduais e regionais. Na elite, precisou aprender a se defender, ainda que esse jamais tenha sido o propósito de sua formação na função. Conseguiu ter a equipe menos vazada antes de rumar para o Flamengo, onde herdou um elenco que não lhe dava outra opção além de atacar.

Da tentação de agradar com a ideia de emular Jesus à libertação em organizar um time mais à sua feição, Ceni conviveu com lesões e nítidos problemas físicos até encontrar uma formação de meio-campo que, daqui a décadas, será utilizada como referência na defesa da possibilidade de reunir apenas jogadores criativos: Diego, Gerson, Everton Ribeiro e Arrascaeta.

O uruguaio, por sinal, o melhor jogador do Flamengo neste campeonato. Aquele que garantiu pontos e manteve alto desempenho individual mesmo quando, coletivamente, o time exibia imensas fragilidades.

O quinto título em quatro anos de carreira indica a Ceni uma trajetória potencialmente tão brilhante quanto a de goleiro. Mas os centímetros de Edenilson – o principal jogador do Inter no Brasileirão – não o tornariam melhor ou pior. O próximo passo é incrementar o repertório ofensivo sem perder o equilíbrio nem tornar sua defesa vulnerável.

Abel Braga, técnico Inter — Foto: Ricardo Duarte/Divulgação, Inter

Abel Braga, técnico Inter — Foto: Ricardo Duarte/Divulgação, Inter

Isso poderá ser feito com tempo, treinamentos, é um processo que teimamos em desrespeitar. Todos nós, envolvidos no futebol brasileiro. É provável que o campeão brasileiro atinja seu objetivo. São dignos de aplausos seu compromisso com o trabalho e a capacidade de absorver e se tornar cúmplice dos sentimentos dos torcedores.

Do outro lado, Abel Braga, depois de trabalhos pouco satisfatórios, deu indícios de que ainda pode montar equipes eficientes dentro de um plano de jogo menos vistoso, mas com probabilidade de vitórias.

Aos que preferem enxergar ganhadores e perdedores nos centímetros da vida, só resta mesmo criar rótulos que se desmentirão a cada três dias. A temporada 2021 já começou.

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